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O Conselheiro


Sou um crítico, isso sempre fui,

mas hoje, já não critico mais,

os outros, como rio que flui,

afinal quem sou pra criticar os demais?

 

Falando como, um conselheiro,

conselhos meus, todos a ouvir,

do pitaco era sempre o primeiro,

mas agora quero me redimir.

 

É que pensei, sempre de boa-fé,

que problemas, todos, ia resolver.

Na vida alheia, metendo o pé,

sem que nada fosse acontecer.

 

Amigos meus, não me entendam mal,

quisera eu ter consciência tal,

mas à época, reinava o orgulho,

que só em mim fazia mergulho,

sem consciência do que era real.

 

Peço que acompanhem aqui meu raciocínio,

sem olhar pra trás, como fizera Plínio.

 

Sem julgamento, ou apedrejamento,

de quem sempre teve boa intenção.

Atentem apenas a este momento,

em que aqui, lhes peço perdão.

 

Uma vez dotado de racionalidade,

Ou, como queiram, de "boa-razão",

eu ainda, naquela idade,

crendo a tudo então resolver,

mais que capacidade, tinha o dever,

de conceder minha opinião.

 

Hoje, aqui, na consciência imerso,

vejo que o que fiz foi só percorrer,

de Mefistófeles o caminho inverso,

ignorando cada universo,

que todos são em seu próprio ser.

 

De conselheiro fiz-me bobo da corte,

que hoje de Fausto tenho até inveja.

Quisera eu ter melhor sorte,

não pra provar minha própria morte,

mas respeitar-lhe, seja como seja.

Completou 100 anos, esta semana, em 29/03, o texto conhecido como "Oração aos Moços" de Rui Barbosa. O texto fora originalmente escrito pelo renomado jurista por força de convite - por si declinado, por questões de saúde - para ser paraninfo da turma de formandos da faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. O documento tomou tamanha repercussão que fora publicado e republicado por diversas editoras desde então, de sorte a tornar-se verdadeiro clássico da literatura jurídica nacional. Não à toa, todo e qualquer operador do Direito tem ao menos conhecimento da existência de tal obra. Pois bem... o que dizer sobre este fato?      

 


Inicialmente, cumpre referir que o texto redigido pelo aludido jurisconsulto endereçava-se, justamente, a novos futuros advogados. Neste sentido, é natural ler-se nele mensagens aos vindouros profissionais do Direito, como, por exemplo, as que se destacaram ao longo do tempo, conforme a seguir: "Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta"; "não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura"; ou, ainda, "Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis."


Sem dúvidas, estas são muito importantes lições a serem transmitidas e introspectadas por todo e qualquer estudante que deseje ingressar neste hoje definitivamente nada tão seleto universo, o dos advogados no Brasil. Ocorre, contudo, que, como destacamos no início, fazem, hoje, cem anos desde que Rui Barbosa redigiu sua mensagem aos novos advogados. A (nossa) realidade, contudo, se modificou em nosso país e, arrisco a dizer: para pior!


Para além de questionarmos as inclinações políticas e ideológicas de Rui Barbosa, no intuito de compreendê-lo em toda sua integralidade, eu hoje quero falar com vocês em primeira pessoa. Quero dialogar, mesmo que à distância, especialmente com aqueles que aspiram à nobre, embora não mais tão valorizada carreira de advogado nesta nação. Para tanto, me reporto novamente à obra em comento, apenas para dizer, como o fez o aludido jurista, que minha fala deve ser tomada, por vós, como se presencial fosse, como estivéssemos, nós, lado-a-lado, não apenas em um diálogo presencial, mas de braços dados na luta que abaixo irei lhes transcrever.[1]

E tendo dito isso, lhes convido à reflexão real sobre o atual dever e incumbência do advogado em nosso tempo. Sim, por certo ainda temos o compromisso para com a justiça e etc, mas... mais do que isso, penso eu e explico, pelo que nomearei aqui de "(minha) oração (e/ou, por que não, manifesto) aos advogados e estudantes de direito":

Comecemos assim, caros e futuros colegas: de minha parte, logrei obter registro na OAB/SC no ano de 2015, sob o número 43.457, e eis que 5 anos depois - ou, se preferirem, em exatos 100 anos depois que Rui Barbosa falou, em certo sentido, também a vós - eu recebi, em meu escritório, não um cliente, mas uma advogada. Em sua mensagem, chamou-me, de pronto, a atenção, o seu clamor: requereu-me, a jovem colega, que ENCARECIDAMENTE lesse o seu currículo. Isso espelha, por certo, a situação dos advogados em nosso país e é dela que desejo falar, sem necessariamente apegar-me apenas ao caso da pretendente em questão. O que me chamou a atenção não fora apenas o seu aparente desespero em ocupar vaga em nosso modesto, ainda que sobrevivente, escritório. Fora, sim, o seu número de inscrição na OAB. Seu número ultrapassava a ordem dos 60 mil. De pronto, tomei-me de assombro, com uma simples operação matemática, donde, subtraindo o meu número de registro do seu, tomei a infeliz consciência de que, nestes cinco anos, desde que ingressei nesta profissão, somaram-se a nós nada menos do que dezesseis mil e quinhentos novos profissionais apenas em nosso Estado. Isso significa, senhores, que, a cada ano, apenas em Santa Catarina, formam-se e passam a integrar os nossos quadros quase quatro mil novos advogados todo ano! Pois bem... neste instante lhes deve estar passando pelas cabeças: no que isso implica e o que fazer quanto a isso?



Lhes digo: vivemos em um Estado Liberal burguês, onde a liberdade é de poucos, para oprimir muitos - a classe trabalhadora, no caso.

Neste sentido, "lei da oferta e demanda" acrescida a exército de reserva dos desempregados, resulta em precarização das condições de trabalho, pois não?

Mas e daí?

E aí, meus amigos, que a OAB é, de longe, o órgão de representação de classe mais caro do país. Aos formados de outras áreas, me digam: quanto pagam a seus respectivos órgãos? Pois pasmem, novos operadores do Direito: no Estado de Santa Catarina, os advogados contribuem anualmente com mais de mil reais!

Dito isso, lhes pergunto: para que pagamos tudo isso e o que este fato tem a ver com que falávamos até então?

Bem... aí vem a questão: se a tendência de um mercado inflado e pautado pelo liberalismo burguês é diminuir direitos da classe trabalhadora, então é dever dos órgãos de proteção garantir que (ao menos) o mínimo de dignidade seja mantido a cada profissional, correto? Pois se assim o é, então saibam: A OAB até hoje simplesmente jamais estabeleceu coisas como um piso salarial aos advogados!

E não é só isso: escritório de advocacia não é padaria, onde os transeuntes entram para comprar quando passam pela rua, por ser a panificadora mais próxima ou por sentirem-se atraídos pelo aroma de pão quentinho. Logo, abrir um escritório exigiria capital e tempo, o que não é a realidade da imensa maioria dos recém formados. Por outro lado, alguém acaso sabe como um advogado é contratado por algum escritório? Pois eu lhes conto: pode ser pela CLT, mas... também pode ser como associado ou sócio minoritário.

E o que é isso?

Explico: associado ou sócio minoritário é, em regra, um membro da sociedade advocatícia que, na qualidade de tal, divide, hipoteticamente, os resultados da mesma. Na prática, porém, os associados nunca ganham mais do que o mínimo, com um diferencial!!

Conseguem adivinhar qual é?

Pode parecer óbvio, mas....... os "sócios minoritários" ou os "associados" NÃO SÃO EMPREGADOS, logo...... não gozam de NENHUMA garantia trabalhista!!!

O que isso significa, na prática?

Isso implica em que os advogados, em geral, 1- não tem salário mínimo; 2- não tem férias remuneradas; 3- não tem gratificação natalina (13º salário); 4- não tem FGTS; 5- não tem aposentadoria; 6- não tem limite de horas semanais de trabalho. São, em suma, escravos!

Poderiam nos dizer: "tá, mas... então por que ninguém reclama ou faz alguma coisa?" ou "Por que a OAB não toma parte nisso?" Bem, jovens mancebos, deixem-me contar duas coisas:

1- A OAB é uma instituição liberal burguesa, derivada do Estado burguês em que vivemos. Logo, esperar que a mesma defenda a classe trabalhadora que ela diz representar - em sentido contrário à noção de liberdade que o liberalismo prega, enquanto promove e incentiva a total submissão de muitos, em prol de poucos - seria ingenuidade, no mínimo incompatível aos que desejam, para si - mesmo que imerecidamente - o título de "doutores". A OAB, como instituição liberal que é, serve aos grandes escritórios, que lucram, justamente, com a opressão de seus pares, e nada mais.

2- Acreditem ou não, mas o mundo é muito maior e muito mais complexo do que aquele que lhes foi apresentado durante os 5 anos da graduação. Assim, devo lhes dizer: na prática, a faculdade de direito, da qual são egressos, foi, e é, na verdade e acima de tudo, antes de uma simples instituição de ensino, um grandessíssimo sistema de PROPAGANDA do Estado Burguês e de sua Estrutura jurídica LIBERAL.[2] Assim, caros colegas, quem se forma em Direito e não pensa e estuda fora da caixa, (pasme) sai não graduado, mas, sim, doutrinado em liberalismo e pronto a defender não os direitos das pessoas, mas, paradoxalmente, as grandes estruturas que os oprimem - a si e aos próprios clientes, cujo dever era proteger!

As consequências disso? Uma massa de sub/desempregados sem consciência de classe que 1- ou aceitam qualquer coisa em troca de dinheiro para não morrer de fome - mesmo tendo estudado durante anos para estar ali; ou 2- integram uma massa de concurseiros (igualmente frustrada, em sua maioria) que 2.1 ou vive literalmente na merda; ou 2.2 passa em um concurso sem qualquer vocação para o exercício da profissão, tornando-se, assim, um péssimo profissional!


"Ok", me diriam, mas... "o que fazer neste cenário"?

Pois bem... Lhes digo: o caminho não é fácil e tampouco curto. O primeiro passo, contudo, é ter consciência do que aqui foi dito - na hora de escolher o curso e de ingressar neste nicho do mercado de trabalho. A partir disso, recomendo:

1- não faça direito para ficar rico - porque você não vai!
2- Se já ingressou na carreira e não está disposto a desistir tão fácil, então... dica: organize-se! Faça-se presente na OAB. Exija seus direitos e dos demais trabalhadores do direito iguais a você!
3- Não limite sua militância apenas à advocacia. Essa luta é contra o sistema como um todo, que permite a opressão e a institucionaliza e defende. Assim, junte-se a outros trabalhadores já conscientes; conscientize os que ainda não estão; e lute!

Você fez/faz Direito para fazer (e garantir) direito(s), e não para ser oprimido e calar!

Ou isso, ou você não merece mesmo a alcunha que recebe:

"Ad vocatus", do latim, "aquele que é chamado para defender!"

Em suma: ADVOGADOS, UNI-VOS!




Abraços advocatícios e revolucionários!

Até a próxima!

[1]Recomendo que leiam a obra na íntegra. Nela, dentre outros, Rui Barbosa apresenta suas escusas pela impossibilidade de se fazer presente no evento para o qual foi convidado. Sua fala é tão bela que me abstenho de reproduzi-la, pois devo dizer: ninguém é capaz de sequer parafraseá-la!

[2] Recomendo, aos que ainda pensam que liberalismo tem a ver com liberdade, que leiam o livro "A Contra história do Liberalismo", de Domenico Losurdo, em que o historiador se presta a demonstrar, justamente, que, o que se conhece por "liberalismo" sempre esteve, em verdade, atrelado a práticas completamente avessas à qualquer noção de liberdade, como, por exemplo, a escravidão.

Olá, prezados!

 

Lá vamos nós de novo para aquela nossa viagem louca pelas principais notícias jurídicas (e não menos ensandecidas) do nosso país. Mais uma vez a temática de nosso papo por aqui resta evidente, do tipo "só se fala noutra cousa", então, vamos em frente.


O juiz Moro foi julgado parcial. O que isso significa e o que temos a dizer quanto ao julgamento?

Pois bem... inicialmente a parte técnica: o julgamento de ontem, 23/3, foi proferido em processo relativo ao ex-presidente Lula. Moro não era réu. A sua suspeição foi arguida no intuito de determinar (apenas e tão somente) a nulidade do processo, recuperando os direitos civis e políticos do ex comandante mor da república brasileira. Lula foi inocentado ontem? Nem sim, nem não, muito antes pelo contrário! A inocência, meus caros amigos, é a regra em nosso sistema. Assim, se nada houver em contrário (e esse nada tem de ser uma sentença penal condenatória transitada em julgado, segundo termos de nossa vigente Constituição) a pessoa é considerada inocente. Neste sentido, a anulação do processo não determina, propriamente, a inocência do réu. Quem o faz é a Carta Magna! De toda forma, e para efeitos práticos, sim: Lula recupera (como já houvera recuperado desde a última decisão do ministro Fachin) o seu status de "inocente até que se prove em contrário".

De toda sorte, vale questionar: temos somente a comemorar ou alguma coisa pode ser dita de ruim neste instante já suficientemente caótico em que vivemos?



Pois bem... comecemos pelo seguinte: por um lado, é princípio basilar dos sistemas jurídicos contemporâneos que o juiz seja imparcial. É direito reconhecido de todo e qualquer cidadão o julgamento através de um tribunal plenamente isento. Por outro, a questão da suspeição do juiz Moro é do tipo clarividente, mais especificamente da modalidade "só não vê quem não quer". Dito isso, o que temos é o seguinte: se não reconhecida, estaríamos a fazer ruir todo o sistema pelo qual até então vivemos e lutamos para se manter íntegro, pois, deve-se dizer: onde não há julgamentos imparciais, não há, verdadeiramente, Direito.


"DeMOROu". Tardou. Falhou, mas veio a Justiça e com ela o reconhecimento do óbvio e "uLULAnte", se me permitem o trocardalho. Como no mito do imperador que vai à festa nu - porque, engambelado pelos alfaiates, pensa vestir trajes que somente os inteligentes veem - a democracia brasileira esteve nua enquanto MP e Juiz tramavam golpe político em prol de projeto de enriquecimento pessoal e entrega do país ao estrangeiro e ao capital especulativo. No dia de ontem, uma criança, com toda a verdade esperável de quem ainda não se submete aos constrangimentos (ilegais) da vida adulta, disse o que tinha de ser dito: o imperador (juiz) está nu! Era o que tinha de ser dito. O juiz Moro foi parcial. Isso todos já sabíamos. O que faltava mesmo era anunciarem. Trazer à luz do dia. E isso foi feito. Nada a declarar e nada de novo neste "front". Como já dito, a nudez do imperador/juiz nu era notável. O que se esperava é que alguém assim o dissesse, com repercussão geral. O que me chama a atenção é o seguinte: o óbvio mais uma vez foi dito em placar apertado: 3 x 2.

Obs.: Vamos virar esse placar aqui no texto, mas, por enquanto, ficamos assim.



Dos que declararam o óbvio, igualmente, nada a declarar. Fizeram apenas o que se esperava de alguém em seu juízo perfeito, mas... e os demais? Nomeadamente, deixaram de reconhecer o óbvio, o recém empossado Ministro Kássio (Conká?) e o Fachin (aquele do "Aha, Uhul!, o Fachin é nosso!", para parafrasear Deltan, o menino prodígio). Sobre os votos de cada um, gostaria de fixar um olhar mais atento:

Kássio argumentou contra um espantalho ao atacar, a todo instante, em sua decisão, as ditas "provas ilícitas" obtidas pelo Jornal The Intercept. Detalhe: as conversas vazadas não instruíram o aludido processo! Simplesmente não faziam parte do mesmo! É ataque ao espantalho justamente por isso: criou um argumento falso (espantalho) e o atacou, para (falsamente) dar por vencida a tese contrária - a suspeição do Moro. Mas Conká (o Kássio) vai adiante: arguiu, ainda, pela ampla defesa a ser concedida ao.......juiz!!! Indubio pro iudex(juiz)?? Oi??! Detalhe/obviedade-que-precisa-ser-dita 2: pasmem, mas o juiz não estava sendo julgado! O julgamento é do Lula! A arguição de parcialidade se dá tão somente para fins de julgar se o PROCESSO (contra o Lula!) é nulo. Isso e nada mais. Sendo ela constatada, não há pena ao juiz. E se não há, não deve haver que se falar em defesa... do juiz! Risível, não fosse o caso de ser decisão de um representante da mais alta corte de nosso país. De toda sorte, vale dizer: não tendo ido direto ao ponto (que é obrigação sua), decidiu de maneira objetivamente equivocada. Seu voto é nulo por simplesmente não enfrentar o mérito. É como se, num processo criminal, o juiz decidisse com uma receita de bolo, ao invés de condenar ou inocentar o réu.


Voto contra-o-óbvio 2: Ministro Fachin

Se Conká (o ministro) fez o que fez - sem provas , claro, mas - com convicção, Fachin foi mais tímido. Em bom português, "fez que foi, mas não foi, e acabou fondo!" Drible da vaca hermenêutico. Novo ornitorrinco jurídico! Diferente de seu par(ia), V. Exa. não apelou à legitima defesa do juiz(??????). Apelou, antes, à necessidade de processo próprio para julgar.... a parcialidade... de juiz... no processo em questão... (????)


Minuto de silêncio a todos os penalistas e constitucionalistas sérios deste país. Todos eles (nós) morreram um pouco por dentro ao ouvir isso, certamente. Veja bem o que restou dito: pra julgar a parcialidade de um juiz em determinado processo, haveria que se mover processo próprio para julgá-la? E o processo onde ela ocorreu, não seria, justamente, este processo? Onde se julga a parcialidade processual de um juiz senão no processo onde ele foi, justamente, parcial? Disse, o ministro, que repudia os contatos havidos entre MP e Juiz. Que tal atitude é anti democrática e anti republicana, mas...................... que isso merecia processo próprio para ser apreciado (?????)

Entendo a confusão (que um leigo possa fazer. Não o Ministro): parece querer dizer que o julgamento do crime de utilização da máquina pública para fins políticos e particulares, no exercício de cargo ou função pública, é crime (do juiz Moro) a ser apurado em processo criminal próprio, onde reste instaurado o contraditório e a ampla defesa (com julgamento imparcial, veja só!). Corretíssimo. E acho que tem de ser instaurado processo criminal contra o juizeco de Maringá mesmo. Mas............................... pura e simplesmente: não era propriamente este o objeto que estava sendo discutido. Explico: a pergunta a ser respondida pelos Ministros era "o juiz foi parcial? Se sim, então o processo contra o Lula é nulo?" e não "o juiz Moro foi parcial? Se sim, pena de X anos pelo crime de prevaricação (ou seja lá qual for o tipo penal a que se enquadre os atos praticados pelo ex-juiz)". Assim sendo, responder algo do tipo "esta decisão precisa de processo próprio" é uma fuga ao tema, coisa que aprendemos ser equivocada desde os tempos de pré-vestibular, ao estudar para a redação.

E aqui vale novamente lembrar: aos juízes é vedado não decidir desde o código napoleônico de 1804, consagrado no princípio jurídico do "non liquet". Pois se o ministro foi provocado a dizer se o juiz de primeiro grau foi ou não parcial neste ou naquele processo, então tem de, neste ou naquele processo, se manifestar, justamente, sobre a arguida parcialidade do magistrado a quo! Não tem escapatória - ou, se tem, ela é nula! Simples assim!



Tendo desviado do assunto, é como se não houvesse decidido. Neste sentido, reforço: não foram 3 votos a 2. Foram 3 votos contra NAD(eg)A(s)!


Foram 3 votos contra duas receitas de bolo. O bolo fecal em que a teoria (e prática) jurídica brasileira está inserida. É o velho lance do juiz que decide como quer, segundo suas próprias convicções.


Grave erro contra tudo que há de mais caro ao nosso sistema jurídico e eu explico o porquê. Desde a revolução francesa, luta-se contra o uso arbitrário de poder. Assim, naquele tempo determinou-se que aos juízes era simplesmente vedado interpretar, sendo-lhes obrigatório, ao revés, apenas aplicar, mecanicamente, os textos normativos. Com o tempo isso se mostrou insuficiente à sanar todos os problemas de uma sociedade em crescimento, sobretudo com as revoluções industriais em ascensão. Somando-se a isso as grandes guerras, especialmente a Segunda, restou que aos juízes não apenas fora concedida (pela famigerada fórmula de Radbruch - não confundir com Radcliffe, ator de Harry Potter) maior liberdade interpretativa para determinar os sentidos dos textos jurídico-normativos, como também a eles, principalmente na Alemanha, restou reconhecido o poder/dever de ultrapassar as competências do legislativo toda vez que as normas editadas pelo mesmo demonstrassem-se demasiado injustas.


Pois no Brasil isso serviu não para refrear um legislativo/executivo despótico, mas, ao revés, para desenvolver verdadeira "judiciariocracia", onde, na prática, os juízes, sobretudo os da suprema corte, decidem como querem e este é o Direito, não obstante haja expressa positivação em sentido contrário. Veja-se a inversão de valores e total contrassenso que isso representa: para enfrentar o despotismo do legislativo, concedemos poder ilimitado aos... juízes? Algo do tipo... "se ficar o bicho come, se correr o bicho pega"? Bem... não é disso que tratam as Cartas Constitucionais dos sistemas jurídicos contemporâneos. Aqui, como em boa parte do mundo, fala-se em separação dos poderes. Garantias constitucionais. Onde ninguém pode tudo e o todo vem das partes. Os meios justificam os fins, e não o contrário. O direito é pelo povo e para o povo, nos limites da Constituição. Pois se assim o é, e se - relembrando - o próprio STF é cria desta Carta que, justamente, impede que seus ministros façam o que bem entendem, então, deve-se dizer: estamos com problemas! Algo do gênero: os controladores controlam as pessoas, mas quem controla o controlador? Quem julga os juízes? O STF. E quem julga o STF? Tenho uma opinião/sugestão: o povo! Não a massa acrítica dos que se deixam levar pelos discursos midiáticos e terminam com ataques espalhafatosos e pouco efetivos, mas a camada daqueles que, conhecedores do que aqui explicito, ou gritam em alto e bom som que o imperador está nu, ou calam e dele se tornam cúmplices.


Os campos de futebol (e de batalhas) hoje estão sem "torcidas" em razão da pandemia, mas isso não pode nos impedir de gritar. Nosso time, a Democracia e o Estado de Direito, ganhou ontem, e foi de 3 x 0, não de 3 x 2. Ganhamos foi de W.O. do fascismo e da arbitrariedade. Não por outra razão, merecemos, mais do que nunca, bradar o vexame do time contrário e, por fim, (por que não?) pedir música - e retratação da mídia golpista - no fantástico!


A todos, uma boa, imparcial e democrática semana!

Se puder, fique em casa!

Abraços constitucionais e até a próxima!

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.
Olá prezados e prezadas!

É com grande satisfação (e tradicional pedido de escusas pelo hiato dos textos por aqui publicados) que inicio novamente nosso papo semanal, tratando sobre as principais notícias jurídicas de nosso país.


A bola da vez já é conhecida por todos com o mínimo acesso a internet: a anulação dos processos de Lula, que outrora o condenaram à prisão e o impediram de disputar o pleito de 2018.

 

Bem... Quanto a isso, vamos lá:

O processo fora objeto de uma série de Habeas Corpus impetrados pela defesa do petista ao longo do tempo, remédio constitucional esse q serve, justamente, para coibir o cerceamento da liberdade de ir e vir em razão de atos ilegais perpetrados por autoridades públicas. Bem... Dos múltiplos HCs pendentes na mesa do STF, o relator de um deles, ministro Fachin, decidiu ontem: os processos contra Lula são nulos. Maravilha. São mesmo e assim tinham de ser reconhecidos. A dúvida é: decidiu, o ministro, pelas razões certas? E isso importa tanto? Bem... Vejamos:

V. Exa. decidiu conceder a ordem, anulando os processos, sob a alegação de que os mesmos são nulos em face da incompetência do juízo a quo. Explico. A competência para julgar ações penais se dá, em via de regra, ao juízo do local onde os crimes foram cometidos. Bem... No caso do Lula, a acusação fora de ter recebido vantagens indevidas da Odebrecht, mais especificamente um sítio em Atibaia/SP e um apartamento no Guaruja - São Paulo capital. Bem... pela regra acima, deveriam julgar os casos, a justiça de São Paulo ou, então, a de Brasília, pois o presidente lá trabalhava e, assim, pressupõe-se que, se cometeu crime em razão de sua função, o fez onde estava trabalhando, justamente, correto? Bem... Esse não foi o "entendimento" da Lava Jato à época. Deram um "drible da vaca" hermenêutico para puxar a competência para Curitiba e assim instauraram o processo por lá. Caso estapafúrdio. Gritantemente nulo. Acertada a decisão do ministro, mas... há mais alguma coisa a ser dito a respeito, ou tudo termina aqui? Veja: estamos diante de um caso cuja ilegalidade salta aos olhos, e que, não obstante, fora referendada inclusive pelos tribunais de segunda instância! O próprio STF já fora defrontado com tal nulidade e nada fez.

Ah, e só para lembrar: nulidades são matéria de ordem pública. Assim, os magistrados podem e devem se manifestar SEMPRE sobre elas, a qualquer tempo e por iniciativa própria, inclusive! Não precisa que ninguém lhes peça ou diga para reconhecer!

Dito isso, perguntas como "por que só agora?" inevitavelmente retumbam nas almas sanas que ainda restam neste país. Há rumores - na minha própria cabeça - de que tal decisão fora assim fundamentada em razão do seguinte: já não é mais escusável que se mantenha os processos do Lula em estado de plena validade. A "vaza Jato" já não permite que assim se proceda. São absoluta e escancaradamente nulos.

O fundamento principal, sabemos: a suspeição do juiz Moro e do próprio MP - outrora concebido enquanto "fiscal da lei", veja só! A anulação do processo em razão da suspeição poderia, contudo, fazer ruir (ainda mais) o mito da Lava Jato criado anos atrás - inocentando Lula, por certo, mas, ainda mais: fazendo prosperar a narrativa de que 1-foi golpe; 2- foi mais golpe ainda quando juiz e MP entraram em conluio para - prender em segunda instância réu que, pela Constituição, deveria ser considerado inocente até trânsito em julgado e, assim - retirar do pleito um favorito candidato às eleições de 2018, o que deflagra fraude eleitoral e suja de sangue as mãos de quem, como boa parte dos ministros da suprema corte, algum dia apoiou versão contrária. Diante de tal impasse, como poderia Vossa Salomônica Excelência sair pela tangente?


Possível conversa interna na cabeça do ministro, entre si para consigo mesmo:

"Seguinte: não tá dando mais pra manter essa Lava Jato, cara. Os cara escancararam tudo... E aí, o que a gente faz? Opa! Mas lembra do lance da incompetência? Lembro! Bora alegar! Anulamos o processo com base nela, nos eximindo da responsabilidade de ter convalidado um processo escancaradamente nulo, ao passo que deixamos a chama lavajatista em fogo brando, apagada jamais! Assim, não ficamos como referendários do absurdo, ao passo que não manchamos nossa biografia endossando narrativas contraditórias à nosso próprio posicionamento anterior, como as recém expostas. Voilà! Partiu! Eureka!"



Conjecturas à parte, assim foi feito. Os processos foram anulados por força da incompetência e não da suspeição. Ainda é possível que os demais ministros analisem tal tema, porém, desde logo, o que podemos disso extrair? Temos mais motivos a comemorar ou a nos preocupar? Bem... de minha parte penso o seguinte: posteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988, tem-se que o direito - e especialmente o processo penal - é marcado por uma série de requisitos formais, frente aos quais nada pode ser feito pelo estado, sobretudo se contrário a direitos individuais dos cidadãos. Neste sentido, não valem mais as máximas como "os fins justificam os meios". É o oposto que vale em um Estado de direito. São os meios, os únicos capazes de justificar os fins. Lembremo-nos: "ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado...". Logo, é o trânsito em julgado que faz alguém culpado, juridicamente falando, e não o eventual e/ou hipotético delito. Assim também, não apenas importam as disposições finais de uma decisão judicial - no sentido de se dizer coisas como "inocente", "culpado", "nulo" ou "legal". Não é a afirmação de nulidade que torna o processo nulo, mas justamente os fundamentos pelos quais assim se sustentou. Pois se assim o é, deve-se dizer: os fundamentos importam e muito ao direito e eu explico o porquê.


Nós, cidadãos, integrantes de um Estado Democrático de Direito somos herdeiros de uma tradição liberal de luta contra o uso despótico de poder. Assim, lutaram, os revoltosos franceses, à época, pela determinação de regras pré-ordenadas para regular o convívio social, como forma de repúdio e total afastamento das arbitrariedades do governante. Neste sentido, cada ato do poder em questão passaria a ter de estar previamente fundamentado em lei para somente então ver-se aplicado na prática. Sim, o direito mudou de lá para cá e já não concebemos que apenas a "letra fria" da lei seja suficiente para regulamentar o convívio social de sociedades tão complexas quanto as atuais. Disso, porém, não se pode concluir que tenhamos retornado à forma de Estado cuja vontade dos poderosos é soberana. Não à toa - e por isso mesmo - falamos de Estado de Direito e não de reinos de famílias tal e tal. É que o Direito já não é mais visto como reles conjunto de regras escritas. É, antes disso, a sua interpretação, dada caso a caso, num amalgama entre textos, contextos e princípios. Mas veja: interpretar não é fazer o que se bem entende. Interpretar não é dizer qual cor lhe agrada mais. Interpretar é atribuir sentido e esses vêm da história/tradição. Assim, não pertencem a um sujeito só, bem como não estão dados às subjetividades individuais. Pois se assim é que é, então, veja: Fachin ter decidido o caso em apreço tão somente com base na incompetência do foro, desprezando as demais questões - a exemplo da flagrante suspeição do juiz Moro -, com o único fito de não assumir o grave erro institucional cometido até então, é ato anti-jurídico, pois, ao decidir em proveito próprio (lê-se: para não "manchar a própria biografia" - manchando-a, paradoxalmente), está, acima de tudo, desrespeitando a própria tradição do Direito, enquanto conjunto de normas idealizadas para fins de justamente coibir o uso arbitrário de poder.


Esta é uma patologia antiga de que padecem os membros do judiciário. O Lula está livre? Está, embora ainda possa sofrer novo processo. O Brasil ganha enquanto nação, cuja justiça tardou, falhou, mas, ao fim, reduziu danos práticos perpetrados a um cidadão ilegitimamente condenado. Perde, todavia, ao seguir sendo um Estado governado pelo arbítrio dos julgadores. A nós mortais resta assistir e criticar, até onde nossas forças nos permitam ir.


P.S.1: Este texto (e o seu título) deve servir para isso: para que tenhamos, todos, os olhos abertos, e saibamos que, no "triângulo processual" do direito contemporâneo, o que vale é a (fundamentada) "hipotenusa", que só se obtém "enquadrando-se" os "catetos" - e não saindo pela tangente!


P.S.2: por falar em geometria, nas antigas aulas de escola, ainda me recordo: professor dizia que não bastava escrever o resultado. Tinha que demonstrar como se chegou nele. Não sei o que fizemos depois disso, mas aparentemente esquecemos dessa regra de ouro ao sair de lá...

Abraços democráticos e até a próxima!


Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.

Olá novamente, prezados!!!

Reitero, como sempre, as escusas pela minha ausência e a consequente abstinência que lhes deixo pelo saber jurídico-filosófico acerca dos últimos acontecimentos, assegurando-lhes, todavia, que tenho militado em outras searas, sempre no intuito de, mais do que informar a todos sobre o que tem ocorrido, lutar pela modificação do que está por aí.


Justificadamente requerida a vossa remissão, venho até aqui para novamente tecer alguns comentários acerca dos últimos ocorridos no campo político-jurídico de nosso país.

A notícia que mais repercutiu nos últimos dias relativamente ao nosso sistema judiciário foi o julgamento acerca da possibilidade de reeleição dos representantes das mesas de cada qual das casas legislativas federais (e.g., presidência da Câmara dos Deputados, presidência do Senado e etc).

Na hipótese, tratou-se de decidir acerca da (im)possibilidade de os atuais representantes de cada casa - nomeadamente o dep. Rodrigo Maia e o Senador Davi Alcolumbre - reelegerem-se para novo "mandato" de presidentes de suas respectivas casas legislativas.


Pois bem... a controvérsia (não deveria) se dá(r) pelo seguinte:

O art. 57 de nossa vigente Constituição Federal, em seu parágrafo 4º dispõe, in verbis, que "Cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subseqüente."

Como se vê, cada qual das casas, quando do início da legislatura, deve eleger os membros de suas "mesas" - como seus presidentes, por exemplo - a cada dois anos, sendo vedada (do português, proibida) a recondução (do português também: reeleição) para o mesmo cargo ou função.

O texto constitucional parece claro. Quando se diz que é "proibido", deve parecer, aos lúcidos, que é... err... proibido, estou certo?


Bem... estou certo sim, mas... num mundo louco como o nosso, estar certo parece valer pouco, e, às vezes, o óbvio tem de ser dito, sob pena de ficar para trás.

Assim, o caso foi, não por outra razão, levado à instância máxima da jurisdição nacional, responsável, justamente, pela avaliação da constitucionalidade de determinados atos, lê-se: o STF.

Novamente com olhos ao que a nós, lúcidos, poderia parecer bastante lógico, seria o caso de a Corte julgar, de pronto, como inconstitucional qualquer tentativa de se realizar a aludida recondução, uma vez que, conforme já dito, o próprio texto constitucional assim impede.

O voto vencedor fora aquele que, com efeito, afirmava o que a constituição diz de maneira bem clara, ou seja, a impossibilidade de reeleição dos membros da mesa de cada casa legislativa. Assim, por que nos preocuparmos?

Bem... o problema (e o perigo) é que, pasmem: contrariamente a qualquer expectativa de nossa parte (nós, os lúcidos, como já disse) a decisão pela inconstitucionalidade do que a nós é manifestamente inconstitucional foi apertada. 7 votos à favor e 6 votos contra. Diga-se: "por uma cabeça", deixamos de rasgar (mais uma vez) a constituição.


Neste sentido, cabe a pergunta: pode isso, Arnaldo?


Bem... como talvez já seja do conhecimento de todos, o STF é a corte que tem como função justamente garantir o cumprimento da Constituição. Assim, toda vez que provocado, é seu dever, antes de tudo, reafirmar os ditames constitucionais face a eventuais investidas dos demais sujeitos da sociedade civil, aqui inclusos os políticos e demais autoridades públicas.

Sendo assim, como conceber que os magistrados possam ter votado, em grande número (a quase metade dos ministros) em prol de algo manifestamente contrário ao próprio texto constitucional a que, diga-se: cada um deles, prometeu, justamente, proteger?

Bem... a história não começa hoje e, para explicá-la, terei de lhes fazer uma brevíssima introdução histórica. Vamos comigo?


Que as normas e, com elas, as constituições tenham sido feitas para serem cumpridas ninguém, em certo sentido, olvida. O problema é que, sobretudo desde a Segunda Guerra Mundial, começou-se a conceber que os textos normativos, por si só, não seriam a norma aplicável aos casos em questão, especialmente porque os mesmos sempre tem de ser interpretados. Assim, com o advento dos regimes nazi-fascistas europeus, passou-se a postular que os magistrados, ao aplicarem as normas, teriam de levar em consideração não apenas os textos escritos, mas também e sobretudo um arcabouço principiológico, de maneira a aplicar as normas somente quando fosse o caso de as mesmas não os desrespeitarem (os princípios).

A questão de quando um texto jurídico (ou, a sua interpretação) estaria, no entanto, ferindo os princípios dos sistemas normativos ficou, entretanto, a cargo dos magistrados.

Pois bem... o que ocorre é que, em solo brasileiro, tal liberdade interpretativa concedida aos juízes em solo europeu - para que realizassem uma interpretação das normas de sorte a aplicá-la de forma justa - terminou por, ao fim e ao cabo, servir como verdadeiro álibi para que os magistrados decidissem como bem entendessem.

Assim, em solo brasileiro, os magistrados, de maneira geral, hoje aplicam as normas jurídicas conforme suas particulares compreensões, sob a falsa égide de que possuem liberdade (total) para tanto.

Neste sentido, mesmo (e sobretudo) membros da mais alta corte passaram a não mais sentirem-se estritamente vinculados aos textos normativos, mas, especialmente, na incumbência de "melhorar" o Direito, sempre e tão somente de acordo com suas próprias compreensões de mundo.

Bem... tal entendimento é equivocado por alguns motivos, sendo o mais emblemático deles a ideia de que vivemos em um Estado Democrático de Direito, e que, assim, 1- o poder (de fazer normas) deve pertencer ao povo (que o exerce pelos seus representantes eleitos, e não pelo judiciário); 2- as normas a serem exigidas dos cidadãos advém do próprio sistema normativo e não da cabeça de qualquer sujeito, como um rei ou um juiz; 3- o poder deve ser exercido em sua forma tripartite, ou seja, subdividido entre Executivo, Legislativo e Judiciário, devendo cada qual exercer suas atribuições em relação de independência (ainda que harmônica) para com os demais.


Neste sentido, ao poder judiciário não cabe criar novos textos normativos, pois é esta, justamente, a função do poder legislativo. Aos magistrados cabe, portanto, apenas aplicar as normas. A sua aplicação, contudo, exige interpretação. Assim, a interpretação, em seus moldes constitucionais contemporâneos deve visar não apenas a compreensão autêntica dos termos linguísticos existentes nos textos normativos, mas também (e especialmente) a sua conformidade para com as efetivas diretrizes constitucionais. É neste ponto que surgem, inclusive, alguns mecanismos postos à disposição do judiciário para fins de compreender e interpretar as normas jurídicas materializando-se, em sua aplicação, os efetivos ditames de nossa vigente Constituição. Neste ínterim, fenômenos como a chamada mutação constitucional permitem aos magistrados uma alteração na interpretação de determinados textos, para fins de adequar o seu sentido às atuais concepções acerca do que determina a Constituição.

Um exemplo bobo, porém efetivo de tal instituto é o seguinte: suponhamos que haja um bar onde consta, logo na entrada, uma placa com uma foto de um cachorro e um símbolo de proibido. Bem... uma compreensão "literal" da advertência nos faria, de pronto, concluir, que é proibido, naquele estabelecimento, a entrada de cachorros, correto?


Pois bem... mas então surge a dúvida: este mesmo anúncio, por apenas conter foto de um cachorro, autorizaria, por omissão, a entrada de gatos, macacos, cavalos, elefantes e assim por diante? Parece óbvio que não. Como talvez soe óbvio, este hipotético anúncio deve ser compreendido não apenas enquanto proibição à entrada de cachorros no estabelecimento, mas ao ingresso de todo o qualquer animal, correto? Mais além: acaso não fosse assim compreendida a aludida placa, não pareceria que o seu sentido, através de uma suposta aplicação literal, restaria, paradoxalmente, pervertido? Diga-se: acaso se intentasse interpretar o aludido aviso como apenas proibição de ingresso de cachorros, não pareceria que a real intenção desta advertência seria contraditoriamente prejudicada? Aos lúcidos, deve parecer que sim! 

Pois bem... neste sentido, resta, então, demonstrado o papel da interpretação, enquanto atividade que visa, justamente, aplicar, às situações fáticas, o seu verdadeiro sentido das enunciações linguísticas. Pois sendo o STF a corte responsável, justamente, pela interpretação das normas jurídicas com olhos à Constituição, tem-se que o mesmo está imbuído, justamente, de tal tarefa, qual seja: aferir o real sentido das disposições constitucionais e uma leitura dos demais dispositivos legais de sorte a que a Constituição reste preservada em sua aplicação.

Outras questões, contudo, aparecem nesta discussão. Primeiro: este hipotético sentido das constituições e limitações interpretativas das demais legislações, pode ser aferido tão somente a partir da íntima subjetividade do julgador? Segundo: pode o julgador ir além das disposições textuais dos dispositivos legais, para fins de aplicar sua própria compreensão acerca do que a Constituição regramenta quanto ao caso em questão?

Bem... como já dito antes, as normas a regularem o convívio social dos estados contemporâneos devem advir do próprio conjunto normativo, e não da vontade de qualquer dos sujeitos, individualmente considerados. Assim, resulta que não é dado aos julgadores interpretar/aplicar norma com base tão somente em sua própria cabeça. Neste sentido, é dever dos magistrados, antes de tudo, buscar no próprio direito (que não se limita apenas aos textos normativos, mas também reside nas situações concretas e na tradição jurídica que nos trouxe até os moldes atuais) a correta interpretação a ser dada a cada caso.

De outra parte, ainda sob a égide do Estado de Direito, concebe-se que somente será válida aquela norma advinda de pressupostos já integrantes do sistema, cujos textos, o poder competente para os promulgar é o legislativo e não o judiciário. Neste sentido, não cabe, em absoluto, aos juízes, "interpretar" a Constituição de sorte a modificar o sistema. Devem, os mesmos, limitar-se a conceder aos textos já existentes uma interpretação conforme a Constituição. Isso e nada mais.

Pois se o papel dos magistrados é tão somente interpretar/aplicar os dispositivos normativos já existentes, então tem-se que o mesmo deve se submeter, antes de tudo, às próprias regras da interpretação. Assim, quando ao interpretarem determinado dispositivo, é seu dever, sobretudo, não ignorar os textos normativos (como a nós soaria óbvio). Assim sendo, e recorrendo novamente ao exemplo do bar, se na placa consta uma imagem de proibido e um cachorro por debaixo deste símbolo, é natural, com força na tradição existente em termos de placas de advertência, que se conclua que a vedação deve se estender a todos os demais animais. Quem desejar assim aplicar tal normativa, de maneira devidamente fundamentada, deve apenas reconstruir o histórico de tal tradição para fins de demonstrar, ao fim, que a mesma é legítima e de fato existe, fazendo com que prevaleça sobre as demais interpretações.

Ainda na referida alegoria, não se pode, porém, apenas com olhos ao aludido letreiro, deduzir, com base em uma compreensão particular de o que seria "o melhor para o bar", que a proibição se estenda também para a população LGBT, por exemplo. E isso se dá não apenas porque a ideia de proibir pessoas de entrar em estabelecimento com base em sua sexualidade soa absurda, mas especialmente porque o enunciado na placa simplesmente não permite, com olhos ao que nele consta, que assim se conclua.


Poderíamos aqui discutir sobre a legitimidade de tal proibição (ou seja: se a população LGBT deve ou não ser proibida de entrar naquele bar), mas simplesmente não podemos dizer que o anúncio em questão assim (im)possibilita. A questão sobre quem pode ou não entrar no bar incumbe (apenas e tão somente) ao próprio dono do bar - abstraindo-se, neste meu exemplo, demais conjuntos normativos onde o mesmo possa estar inserido. Assim, somente ele pode decidir quem entra ou sai de seu estabelecimento. Se acaso ele deseje passar a estender sua proibição a demais sujeitos, deve, ele (e apenas ele), alterar a placa que por ora pende na entrada de seu negócio. Aos intérpretes resta tão somente compreender o que os seus anúncios dizem e/ou querem dizer. Ponto final.

Neste sentido, quando se fala, por exemplo, de mutação constitucional, enquanto mecanismo que possibilita aos magistrados uma modificação da interpretação de determinado dispositivo legal, com o fito de que o novo entendimento atinja as efetivas finalidades do regramento, não se concebe que possam, os mesmos, alterar os textos normativos. Assim, quando leem determinado termo, não podem simplesmente ignorá-lo e, menos ainda, contrariá-lo. Ignorar e/ou contrariar determinada fração de texto normativo implicaria, inclusive, em desrespeitar a noção de separação entre os poderes, dado que, a ignorância a determinadas partes do texto implicaria em nada menos que alterar o próprio texto, cuja redação, sabemos: é competência exclusiva dos legisladores!


Retornando, então, ao caso em questão (ou seja, à [im]possibilidade de reeleição dos membros da mesa de cada casa legislativa federal) tem-se que, se o texto constitucional dispõe expressamente que é vedada a aludida recondução, é de se concluir que não pode, a Corte, simplesmente ignorar tal disposição, pois, conforme já dito, o judiciário é órgão dotado de poder para interpretar/aplicar os dispositivos normativos, e não redigi-los. 

Óbvio, mas, como se viu, não é assim que entendem boa parte dos magistrados nacionais.

Este é um problema sério e nada recente na história de nosso país. Vale lembrar que nossa história é marcada justamente pelo uso arbitrário do poder e uma profunda dificuldade em democratizar-se, de fato, os sistemas normativos. Assim, não por outra razão, a vigente Constituição fora promulgada justamente no intuito de vedar a todo instante a possibilidade de uso despótico da autoridade estatal. Neste sentido, é compreensível (ainda que não justificável) que todos os membros dos poderes hoje constituídos, tendam, com frequência, ao abuso de poder. Para verificar tal tendência basta observar os últimos grandes julgamentos da aludida Corte, onde, ainda no ano passado, decidiu, por "placar" apertado, que a prisão em segunda instância não é constitucional, pois, como parece óbvio a nós lúcidos, o texto constitucional que dispõe acerca da presunção de inocência simplesmente lhe veda. O que ocorre é que, desde a promulgação de nossa Carta, tais abusos não mais merecem tolerância, sobretudo se advindos da corte que deveria, justamente, os coibir.


"Ah, mas no final o certo venceu sempre", dirão os incautos e desavisados que somente leram a parte em que a interpretação correta venceu, sem dar-se conta de que o placar apertado pode, cedo ou tarde, virar, e que tal insegurança é, por si só, indesejável. Lembremo-nos que o eminente (com e) excrementíssimo sr. (des)presidente da república está na iminência (com i) de nomear mais um julgador a integrar o tribunal constitucional brasileiro. Assim, caso aceitássemos que, como se tem dito por aí, "o STF é uma casa jurídico-política" - e com isso acatar a ideia de que também podem, os magistrados, "criar" novas normas, para além do que dizem os textos normativos - terminaríamos sem qualquer espécie de argumento acaso o jogo virasse em nosso desfavor.

Ainda recordam sobre a promessa do ministro terrivelmente evangélico? Pois o que me dirão acaso o novo camarada for, de fato, terrivelmente "evanjegue" e passe a alterar todos estes apertados entendimentos da corte? Ou pior: e se o mesmo passasse a, na qualidade de um julgador-legislador, criar normas proibitivas no sentido de, na prática, materializar uma teocracia em nossa república? Aqui vale repetir a consagrada expressão, que aprendi com Reinaldo Azevedo: pau que bate em Chico também bate em Francisco!


Logo, muito embora em algumas "escapadas" da suprema corte se possa obter alguns efeitos práticos proveitosos, como a abertura de inquérito para apurar FakeNews, tal liber(ali)dade eventualmente concedida aos juízes pode, mais cedo ou mais tarde, vir em nosso revés. Não por outra razão, meus caros, é que se fala de Estado de Direito e de primazia do governo das leis sobre o governo dos homens. Decidimos, desde há muito, sermos regulados apenas pelas normas dispostas publicamente em determinados regramentos, antes que pela vontade de qualquer sujeito, pois, sabemos: os seres humanos são no mínimo instáveis, senão maus, por excelência, como diria Thomas Hobbes. 


Digo tudo isso porque tenho visto por aí a comemoração de boa parte da esquerda quanto à "vitória" (mesmo que apertada) obtida na corte. De fato, há que se celebrar. A constituição resistiu. Porém, também vale analisar e prestar a atenção: ela não deveria estar sendo tão questionada assim, a ponto de as mais óbvias questões serem decididas em placar apertado. Simplesmente não se pode conceber que o respeito à nossa Norma Maior esteja dado à sorte do que eventualmente passa na cabeça dos julgadores.

O direito de acesso à justiça é a todos garantido. Disso não se pode escapar. Assim, o ajuizamento das mais estapafúrdias pautas está, para o bem ou para o mal, dentre o rol de possíveis matérias a serem sempre submetidas ao julgamento jurisdicional. Mas também é direito de todos que a Constituição resista e seja respeitada - aplicada e demonstrada - para todos e a todo instante - de maneira coerente, estável e íntegra - como norma válida e soberana para regulamentar nosso convívio social.

Ou isso, ou falar de democracia e de Estado de Direito é conversa para boi/gado dormir.


Enfim...

Seguimos na luta!

Abraços hermenêuticos e até a próxima!

Sobre a coluna

A coluna Homo Juris é publicada sempre às quartas-feiras.